24/05/2020

Eu sempre me senti alheia deste mundo

   Depois de inúmeras reflexões, nutridas por quase uma vida inteira (eu tenho vinte e um anos), deparei-me com uma percepção: eu sempre me senti alheia deste mundo. 
   Pois eu sempre me senti alheia desse mundo, como se fossem dois, um em que as coisas aconteciam e as pessoas interagiam, e outro, onde eu estava. Eu sempre, ou desde que eu me lembre, assumi mais a postura de observadora do mundo social do que de participante dele. Desde que eu me lembre, talvez desde os meus dez anos de idade, eu me vi bastante introspectiva, como se eu vivesse mais nos meus pensamentos, planejando cenários que eu gostaria de viver, do que o próprio desenrolar da vida real. Foi nesse momento, inclusive, que eu comecei a nutrir minha preocupação extrema com a percepção alheia, o que me levou a ser cada vez mais cautelosa, hipervigilante, e ansiosa. Ansiosa porque eu não estava satisfeita com a vida que eu tinha, com as pessoas com quem eu interagia - e não interagia, com a forma como eu interagia com as pessoas, e ansiava pelo instante em que essa satisfação me preenchesse. 
   Eu lembro até hoje de quando eu tinha mais ou menos uns dezesseis anos e desejava, com a ansiedade pulsando dentro de mim, que o tempo passasse tão rápido que, num piscar de olhos, eu já estivesse adulta, determinada, profissionalmente e pessoalmente bem estabelecida e estabilizada. Pois o futuro, aos meus olhos, parecia mais confortável do que o meu ensino fundamental, momento em que eu vivenciava a angústia da puberdade e das minhas paixonites platônicas por meninos que eu não conseguia nem encarar nos olhos. Faz muito sentido, também, que tenha sido nesse período que a minha comparação com as outras pessoas também começou a ser cultivada, comparando-me com as meninas que eu julgava serem minhas concorrentes em relação ao menino por quem eu era atraída, ou com aquelas que eu julgava serem tão bonitas, e eu, tão feia. Ou, inclusive, com aquelas meninas que eram extrovertidas, engraçadas, que atraía a companhia dos outros. Um outro fato interessante: minha comparação sempre foi, desde aquele momento, com meninas, mulheres, o que demonstra o impacto pessoal da competitividade feminina incentivada na nossa cultura.
   Pois bem, retomando a temática central: nunca senti que eu estava de fato vivendo a minha realidade. Isso porque eu sempre passei muito tempo da minha vida ou ruminando as minhas ações e a dos outros, ou planejando ações futuras, e criando expectativas sobre a dos outros. Minha cabeça sempre foi um espaço com um fluxo intenso de pensamentos, que correm tão rápidos. Afinal, a minha vida era toda planejada ali, na minha cabecinha, compensando os poucos riscos que eu assumia na minha vida concreta, com tanto receio de, depois, ser alvo da temida ruminação (mesmo que, na verdade, independente das minhas ações ela sempre viesse, assumindo o comando dos meus pensamentos). 
   A terapia, de fato, me ajudou bastante. Ajudou-me a tomar coragem para agir mais, em vez de ficar planejando ações. Mudar de lugar na sala de aula, no segundo colegial, foi uma demonstração emblemática dessa ajuda, pois eu tinha receio de que, fazendo esse movimento, saindo da primeira carteira e indo me sentar mais para trás, junto as meninas de quem eu me sentia confortável, fosse ser desconfortável e chamar atenção. Fosse talvez incomodar alguém? De fato, chamou atenção, mas não me importei.
   Sempre me vi sonhando que as relações vivenciadas pelos personagens nos filmes que eu assistia acontecessem na minha realidade. O melhor amigo que se apaixona pela amiga e começam um relacionamento, o badboy que se atrai pela mocinha nerd, as amizades-irmandades que pareciam superar todas as barreiras. E, apesar de ser uma fantasia extremamente romantizada, idealizada e totalmente afastada da realidade, eu a via, de alguma forma, nas relações entre as pessoas reais dos ambientes em que eu vivenciei. Pessoas começando a se relacionar, paqueras, namoros, intrigas, amizades descontraídas, íntimas, nos quais as pessoas realmente pareciam estar confortáveis. E, diante dessa perspectiva, eu estava ali, me sentindo uma alienígena, como se eu não tivesse nada disso. Minha autoestima em relação aos meus aspectos físicos era muito baixa e eu não me via satisfeita nas relações que eu tinha com as outras pessoas, sempre elevando patamares absurdos de performances desejadas e me decepcionando, com os outros mas, principalmente, comigo. 
   Eu escrevo tudo isso sabendo que eu ainda me sinto, em muitos momentos, dessa forma, me sentindo uma mera observadora nesse mundo. Aprendi a viver dessa forma, hoje é meu piloto automático, e, pois, é muito difícil eu me esquivar disso, apesar de, sim, eu conseguir. Tenho patamares de excelência para quase todos os meus relacionamentos e, por não serem alcançados, visto a idealização que eu nutro desde mais nova, me vejo muitas vezes estressada, frustrada. É um desafio, portanto, me desvincular desse papel passivo para tornar, realmente, protagonista da minha história, incluída no mundo social a qual pertenço. Abaixar as expectativas, viver mais do que pensar, ser menos exigente comigo, ser menos exigente com os outros, perdoar quando os outros não te entendem, perdoar quando você não entende o outro, dialogar e tentar entender o outro e se fazer entender. A imprevisibilidade faz parte do mundo, da vida, e não tem como se prender ao mundo racional buscando planejar todos os seus comportamentos, de forma que supram as suas expectativas, românticas, derivada dos filmes que você tanto assistiu e assiste. 
   Viver requer mais leveza, menos rigidez, esta que estou tão acostumada. É um desafio, então, eu tentar me arriscar a viver dessa outra forma, e torná-la meu piloto automático. Sentir-me incluída no mundo, participante ativa das minhas vivências, e personagem importante nas vivências de algumas pessoas. Apesar dessa resistência resultado do meu passado, dessa inércia, nunca estive tão feliz em estar vivendo. Estar vivendo, participando, errando, me perdoando, perdoando os outros, vivendo. Sendo eu mesma, autêntica, particular, e vivendo. Sendo presente, participante, e não mais meramente a platéia.  
   Eu sempre me senti alheia desse mundo, e hoje luto, dia após dia, para deixar de me sentir assim.

Um comentário:

  1. Me sinto um pouco assim. Quando eu era mais nova, eu passei grande parte da minha vida fantasiando coisas na minha cabeça, pois achava que nada disso poderia acontecer comigo. Quando descobri que podia escrever o que pensava, passei literalmente horas e horas trancada em um quarto encarando a tela de um computador e escrevendo tudo o que eu queria que acontecesse comigo. Eu via as experiências dos meus amigos e pensava “nada disso vai acontecer comigo”. E por que? Porque eu não boa o suficiente ou bonita o suficiente ou engraçada o suficiente e por aí vai... ao mesmo tempo eu esperava que as coisas simplesmente acontecessem comigo. Era assim que parecia ser com os outros, por que comigo não?
    Anos se passaram e nada aconteceu. Quando eu finalmente resolvi sai da toca e comecei a agir, coisas aconteceram, coisas diferentes e incríveis que acabaram porque aquela garotinha que achava que nunca seria amada, que achava que não era bonita o suficiente ainda estava dentro de mim. Essa quarentena me fez perceber que eu ainda sou uma garota (tenho 19 anos) tentando ser mulher. Eu não tenho mínima ideia do que significa ser uma mulher, ser adulta. E agora que eu tenho muito tempo livre e a cabeça extremamente vazia, que antes já tentava lidar com as tristezas diárias de ser quem é, agora tenho que lidar com os arrependimentos. Eu só não tenho ideia do que estou fazendo ou do que deveria fazer. Essa vida é complexa demais. E na boa, só queria minha terapia de volta.

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